PAUL CUVELIER
LENS - FRANÇA
(22/11/1923 - 4/7/1978)
Paul Cuvelier é, indiscutivelmente, um dos grandes mestres da banda desenhada europeia. No entanto, este
facto é tanto mais de espantar quando se sabe que Cuvelier nunca gostou verdadeiramente de banda desenhada
e nunca se dedicou, por inteiro, a essa arte, que ele considerava ser uma arte menor. Com efeito, Cuvelier sempre
afirmou gostar muito mais de pintura e escultura e, na verdade, parece ter nascido com o dom para essas duas artes.
Embora tenha sido um desenhador/ilustrador excepcional, o autor/criador do famoso herói "Corentin"
e da heroína "Epoxy" era, antes de mais, um artista e um esteta. Paul Cuvelier deixou um rico
e vasto legado, constituído por um grande número de esboços, desenhos e telas de grande valor,
que traduzem as emoções de um autêntico artista na busca incessante da perfeição
e da beleza. De facto, a autêntica paixão demonstrada pela interpretação e reprodução
clássica da anatomia dos corpos e das feições do rosto foi uma característica de marca
e um carácter distintivo, sempre presentes, na sua rica e vasta obra. As linhas e traços artísticos,
feitos em tons de preto e branco, dão um enorme ênfase à sensualidade do corpo humano, sendo
este facto especialmente verdadeiro, quer nas primeiras histórias da série "Corentin" quer,
sobretudo, nas aventuras de "Epoxy".
Desde muito cedo que Paul Cuvelier descobre a sua paixão pelo desenho, desenhando, incessantemente e preferencialmente, animais (sobretudo cavalos) e todo o tipo de paisagens. Tinha apenas 7 anos, quando a famosa revista "Le Petit Vingtième" publica um dos seus desenhos. No final dos estudos, entra para a Academia de Belas Artes de Mons e, quando termina o curso, começa a frequentar o "atelier" do pintor Louis Buisseret. É, por essa altura, que Cuvelier imagina e desenha várias personagens, cuja principal vai ser o futuro herói "Corentin Feldoe", um jovem orfão bretão, do século XVIII, que sonha partir para o mar em busca de aventuras.
Em 1945, dá-se o seu encontro com Hergé, apresentando-lhe, então, os seus trabalhos, entre os quais, um caderno de aguarelas cujas cenas já faziam prever o aparecimento de Corentin. Muito impressionado, Hergé convida-o a integrar a futura equipa que lançará, em 1946, a revista (semanário) "Tintin", juntamente com Jacobs e Laudy. Na sua estreia, Cuvelier ilustra, de forma convincente e brilhante, uma história (género Western), com argumento de Jacobs e Hergé, passando, assim, com distinção, a sua "prova de fogo" (como se tal fosse necessário!).
A seguir, entre 1946 e 1949, Paul Cuvelier assina a primeira aventura de Corentin, dividida em 3 tomos, com
o título "A Extraordinária Odisseia de Corentin Feldoe", uma notável banda desenhada,
deslumbrante e única, de um grande poder narrativo e de um realismo maravilhoso, não se ligando a
nenhum género conhecido, a qual faz rapidamente de Cuvelier um dos maiores ilustradores do seu tempo. Fruto
das influências conjugadas de escritores clássicos como Paul Féval, Daniel Defoe e Rudyard
Kipling, a série "Corentin" alcança o panteão dos heróis da banda desenhada,
provando, assim, a razão pela qual Paul Cuvelier, juntamente com Hergé, Jacques Martin e Jacobs,
é considerado, justamente, um dos 4 grandes artistas da revista "Tintin".
Durante esses 4 anos, Paul Cuvelier desenha, aproximadamente, 200 pranchas de Corentin, várias dezenas de
capas e diversas ilustrações para a revista "Tintin" e para as Edições Du
Lombard. Porém, este ritmo de trabalho não lhe agrada muito, sentindo-se frustrado e insatisfeito
neste campo restrito e algo híbrido da banda desenhada. Cuvelier possui um verdadeiro espírito de
artista, vivendo ao sabor dos seus impulsos e ímpetos criadores e, é assim que, em 1950, decide empreender
uma viagem de 4 meses pelos Estados Unidos, tempo necessário para reflectir e descobrir outros horizontes.
No regresso da viagem, Cuvelier renuncia à banda desenhada, para se consagrar, por inteiro, à sua
arte preferida, abrindo o seu próprio "atelier" de pintura e escultura, em Mons, onde, durante
3 anos, se consagra à expressão artística e plástica. Assim, apaixona-se e vive, permanentemente,
obcecado pela graciosidade, elegância e movimento das formas vivas, buscando a melhor forma de as apreender,
através do traço, sob a forma de uma "realidade imaginada".
Contudo, impelido pela necessidade de assegurar a sua subsistência diária, a partir de 1953, Paul Cuvelier vê-se obrigado a deixar a actividade de artista e a vida de boémio, para regressar à banda desenhada e reintegrar as páginas da revista "Tintin", vendo-se forçado a trabalhar arduamente a fim de conseguir o seu sustento. É durante este período que, juntamente com heróis já conhecidos, como Corentin, Kim, Moloch e Belzebú, os fiéis leitores de "Tintin" vão conhecer novos heróis: a jovem e graciosa Line, o intrépido Flama de Prata e o pequeno índio Wapi.
Nos anos seguintes assiste-se, então, a novas criações, por parte de Cuvelier: o ano de
1959 assinala o regresso da série "Corentin", os anos de 1961 e 1963 assinalam, respectivamente,
os nascimentos de Flama de Prata e de Line (com argumentos de Greg), e 1962 marca o aparecimento de Wapi.
Em 1966, Paul Cuvelier conhece um jovem admirador dos seus trabalhos e da sua obra, em geral. Este seu novo amigo
adora contar histórias e deseja escrever o seu primeiro argumento, de preferência, para Cuvelier ilustrar.
O seu nome é Jean Van Hamme, ilustre futuro argumentista de séries de grande sucesso, como "Thorgal",
"XIII" e "Largo Winch". Os dois iniciam, assim, uma estreia colaboração, encetando
um projecto conjunto, no sentido de criar uma banda desenhada, voltada para um público mais adulto, fundada
sobre um cenário de inspiração erótica que descreve as desventuras de uma adolescente
ingénua e desnudada, num quadro mitológico. A ocasião tanto sonhada por Cuvelier de celebrar
a graciosidade e a sensualidade, através da ilustração, e de concretizar os seus sonhos e
obsessões chega por fim, através da heroína "Epoxy", com Van Hamme a assinar o respectivo
argumento, sendo o álbum publicado, em Maio de 1968, pela editora Losfeld.
Porém, a série "Corentin" não está ainda esquecida, por parte de Paul Cuvelier. Este, juntamente com o seu novo colaborador e argumentista, vão assinar dois novos álbuns: "O príncipe das areias", em 1969 e "O Reino das águas negras", em 1973, pelo qual obtém, em 1974, o prémio da melhor banda desenhada realista. Apesar disso, as histórias que produzem não estimulam quase nada a criatividade de um artista como Cuvelier e, como tal, continuar a fazer banda desenhada repugna-o cada vez mais.
Assim, após ter desenhado as 6 primeiras pranchas de "Corentin e o gigante ruivo", com argumento de Jacques Martin, em 1973, Paul Cuvelier renuncia definitivamente à banda desenhada e tenta novamente a aventura artística, cheio de confiança e esperança num futuro melhor. Começa, então, a desenhar e a pintar imenso, praticando a ilustração erótica, esculpindo o gesso e abordando a gravura, chegando, inclusivamente, a preparar uma exposição, em 1977, sobre o tema "As meninas", produzindo, a esse propósito, cerca de trinta telas, em poucas semanas. Este seu projecto é, no entanto, interrompido por uma prolongada doença, a qual o vai vitimar, vindo a falecer, a 4 de Julho de 1978, com a idade de 55 anos, quando ainda teria muitos anos a dar à sua arte.
Embora Paul Cuvelier tenha ajudado a transformar e a dar outra forma à linguagem habitual e tradicional da banda desenhada europeia, os artistas do seu tempo e, mesmo, os mais recentes, sentiram sempre relutância em admitir terem sido influenciados por ele. Da mesma forma que a sua carreira artística foi um sucesso, a sua vida pessoal acabou por ser dramática e, até, trágica, tendo em conta a forma e a idade com que morreu, terminando os últimos anos da sua vida, na solidão, com imensas dificuldades económicas e, de certa forma, abandonado e esquecido, sobretudo, por aqueles que, por uma questão de justiça, deveriam ter elogiado e reconhecido a sua vasta e rica obra.
Assim, por ironia do destino, a reputação e o prestígio de que Paul Cuvelier goza hoje em dia e a importância de que se reveste a sua obra, foram atingidos, em grande parte, à custa da arte de que ele menos gostava, ou seja, o seu talento como ilustrador de banda desenhada sobrepõs-se, em grau de importância, à actividade de artista plástico, da qual nutria uma profunda paixão. A vida e obra de Cuvelier encerra uma grande lição: A realidade e a necessidade por vezes são bem duras e até crueis relativamente aos ideais e às paixões que se tem e, muitas vezes, tem que se optar pelas primeiras em detrimento das segundas, tendo em vista conseguir assegurar a sobrevivência e o sustento pessoal. Foi o que Paul Cuvelier teve de fazer muitas vezes, contra a sua vontade.
A respeito de Paul Cuvelier pode e deve dizer-se que foi um génio incompreendido por muitos críticos da sua época, mas, fundamentalmente, foi um artista "perdido" no mundo da banda desenhada, sentindo-se sempre deslocado e desenraizado nessa arte que ele considerava como menor. Durante toda a sua carreira, Paul Cuvelier revelou-se um eterno insatisfeito, tendo empreendido uma busca constante e incessante pela harmonia, beleza e perfeição dos seus objectos de paixão e fascínio. Essa busca é que lhe dava prazer e o fazia feliz.
Contribuição de Alexandre Ribeiro