JEAN-MICHEL CHARLIER
(30/10/1924 - 10/07/1989)
LIÉGE - BÉLGICA
Nascido em 1924, na cidade de Liège, situada na zona flamenga da Bélgica, Jean-Michel Charlier é,
indiscutivelmente, um dos mais famosos e talentosos argumentistas de aventuras realistas da banda desenhada europeia
e, em particular, da banda desenhada franco-belga. Aliás, pode-se afirmar que tudo aquilo que René
Goscinny representa para a banda desenhada humorista, corresponde, em idêntica dimensão e importância,
ao que Charlier representa para a banda desenhada realística.
Em 1929, com apenas 5 anos de idade, Charlier toma conhecimento da existência do herói "Tintin", recentemente criado por Hergé e, logo a partir dali, começa a desenvolver a sua paixão pela banda desenhada, desenhando e escrevendo as suas próprias histórias de aventuras, as quais são publicadas na revista "Libre Belgique".
Alguns anos mais tarde, Jean-Michel Charlier conclui a licenciatura em Direito, na Universidade de Liège, antes de optar, definitivamente, pela banda desenhada como forma de vida futura. Decisivo para o sucesso desta arriscada opção de carreira, será o futuro encontro, em Bruxelas, com René Goscinny, e, em Paris, com Albert Uderzo, criadores do famoso herói gaulês "Astérix". Os três juntos vão criar, em 1959, a revista "Pilote", para cujas páginas Charlier escreverá as séries "Tanguy e Laverdure" (desenhada, inicialmente, por Uderzo e, mais tarde, por Jijé) e "Barba Ruiva", ilustrada por Hubinon, cuja série Goscinny e Uderzo vão parodiar nas aventuras de "Astérix e Obélix".
Embora tenha adquirido fama e notoriedade a partir do seu talento e aptidão para a escrita, Charlier inicia a sua carreira na banda desenhada como ilustrador. Em Setembro de 1944, Charlier entra para a revista "Spirou", onde faz algumas ilustrações relacionadas com temas de aviação, tendo, assim, a oportunidade de dar largas à sua paixão pelos aviões.
O encontro de Jean-Michel Charlier com Victor Hubinon marca uma grande viragem e uma verdadeira mudança no início de carreira de Charlier, que o conduzirá a especializar-se, futuramente, na escrita de argumentos. Estes dois autores elaboram a sua primeira história, com o título "A Agonia do Bismark", publicada em 1946, na revista "Spirou".
Em 1947, estes dois autores criam, ainda, para a revista "Spirou", a série "Buck Danny", sobre um ás da aviação da "US Navy", sendo o argumento escrito por Charlier e a ilustração feita por Hubinon. Esta série já havia, contudo, sido iniciada, anteriormente, por Georges Troisfontaines, chefe da agência "World Press", o qual tinha começado a escrever as primeiras páginas da história "Os Japoneses atacam", quando Charlier lhe sucede no argumento e na continuação da história. Escusado será dizer que esta série conhece um sucesso imediato e torna-se, rapidamente, numa referência absoluta dos amantes das histórias de banda desenhada do género de aviação.
De início, Jean-Michel Charlier também assiste e auxilia Victor Hubinon na ilustração, sobretudo, no desenho de aviões e navios, enquanto Hubinon se encarrega do desenho das personagens, mas, após alguns episódios, Charlier acaba por concentrar-se e dedicar-se unicamente à escrita dos argumentos. Assim, desde 1948 (data da publicação do primeiro álbum) até 2000 (ano em que saiu o último álbum), foram publicados, no total, 49(!) álbuns da série "Buck Danny", isto, ao longo de 52(!) anos. Em 1978, ano da morte de Hubinon, Bergése substitui aquele na ilustração da série e, em 1989, ano da morte de Charlier, Bergése assegura também, a parir dali, a escrita do argumento da série.
Os cuidados extremos postos, quer por Charlier, quer por Hubinon, na precisão e no realismo com que elaboram e ilustram as histórias de aviação, é consequência da verdadeira paixão que ambos nutrem pelos aviões, o que os levará, inclusivamente, a tirar o brevet de piloto.
Após a publicação simultânea de 3 álbuns de "Buck Danny", Jean-Michel Charlier e Victor Hubinon reúnem todas as suas economias, a fim de poderem tirar o brevet de piloto de avionetas de turismo. Assim, juntos, ganham a vida voando com turistas, ao fim de semana, enquanto que, durante o resto da semana, se dedicam à banda desenhada, desenhando e escrevendo as histórias dos seus heróis favoritos.
Mas, como para conservar o brevet era obrigatório voar com uma certa regularidade e frequência, facto este que, aliás, se tornava bastante dispendioso, Charlier e Hubinon decidem tornar-se pilotos profissionais da aviação comercial, confirmando, assim, a sua paixão pelos aviões.
Em 1950, durante a guerra da Coreia, a companhia aérea belga, "Sabena" contrata Jean-Michel Charlier para co-piloto de aviões "DC3" e "Convair". Porém, ao fim de um ano, sentindo-se saturado com esta rotina e achando que a profissão de piloto de aviação de transporte comercial se assemelhava bastante à profissão de condutor de autocarros, Charlier abandona, definitivamente, a companhia aérea belga e instala-se em Paris, regressando, assim, a tempo inteiro à banda desenhada.
A partir daí, Jean-Michel Charlier trabalha para a "World Press", dirigida por Georges Troisfontaines, onde aquele, além de argumentista, torna-se também director artístico na "International Press", dirigida por Yvan Chéron, cunhado de Georges Troisfontaines. Por esta altura, Charlier tem oportunidade de trabalhar, também, com um grande número de outros famosos artistas da agência "World Press", tais como, Albert Weinberg, Eddy Paape, Dino Attanasio e Albert Uderzo.
Em 1951, Charlier lança e inicia a famosa série "As belas histórias de l'Oncle Paul", onde muitos jovens artistas fizeram a sua estreia na banda desenhada. Até 1954, Charlier escreve várias destas famosas histórias, antes de ceder a escrita a Octave July.
Durante a década de 50, para além da série "Buck Danny", Jean-Michel Charlier escreve o argumento de novas séries de banda desenhada (ou retoma o argumento de antigas séries), na revista "Spirou", tais como, "Kim Devil" (ilustrada por Gérald Forton), alguns episódios de "Jean Valhardi" e "Marc Dacier" (ambas ilustradas por Paape), "O cavaleiro Belloy" (ilustrada por Uderzo) e "Thierry, o cavaleiro" (ilustrada por Carlos Laffond). Outro grande sucesso do seu trabalho, na revista "Spirou", é a série de aviação, "A patrulha dos Castores", ilustrada por MiTacq.
Mais tarde, juntamente com Albert Uderzo e René Goscinny, Jean-Michel Charlier inaugura a agência "Edifrance/Edipresse", especializada em comunicação e banda desenhada. Charlier e Goscinny vêm, também, a tornar-se editores-chefe da revista "Pistolin", entre 1955 e 1958, antes de criarem a famosa revista "Pilote", em Outubro de 1959, semanário que, desde o início, se tornará num enorme sucesso junto dos leitores e amantes de banda desenhada.
Charlier, Hubinon, Goscinny e Uderzo, foram sempre 4 autores muito unidos e solidários, existindo uma grande amizade e cumplicidade entre os 4, não admirando, pois, que tenham colaborado e participado, de forma conjunta, nos trabalhos de uns e de outros. Tal situação é, aliás, testemunhada e comprovada pelas numerosas cenas das histórias de "Astérix" e dos seus piratas ou de "Barba Ruiva", onde estes autores imitam o estilo e a arte uns dos outros, ficando os seus trabalhos, infalivelmente, moldados e ligados uns aos outros.
Na revista "Pilote", Jean-Michel Charlier cria, então, três novas séries de grande sucesso, entre 1959 e 1962: a série de aviação e de guerra, "Tanguy e Laverdure" (ilustrada por Uderzo e depois, também, por Jijé), sobre as aventuras de dois pilotos-aviadores e amigos inseparáveis; a série de piratas e do género de "capa e espada", "Barba Ruiva" (ilustrada por Hubinon) e "Jacques le Gall" (ilustrada por MiTacq). 1963 é, igualmente, um ano de grande sucesso na carreira de Charlier, pois é neste ano que ele cria a melhor banda desenhada europeia do género "western", a série "Tenente Blueberry", ilustrada por Jean Giraud, a qual irá ter um futuro promissor.
Enquanto ia escrevendo estas famosas séries, Jean-Michel Charlier não deixava, porém, de escrever vários argumentos de bandas desenhadas menos conhecidas, mas não menos notáveis, como são os casos das biografias históricas que escreveu ("Surcouf", "Jean Mermoz", "Tarawa"), e das séries "Joe, o tornado" e "Tiger Joe", todas ilustradas por Victor Hubinon.
Charlier também escreve vários argumentos para outros ilustradores, tais como, Martial ("Alain e Christine", na revista "Libre Junior" ; "Rosine", na revista "Pistolin"), Raymond Poivet ("Guy Lebleu", na revista "Pilote"), Aldoma Puig ("Brice Bolt", na revista "Spirou"), Christian Rossi ("Jim Cutlass") e Victor de la Fuente ("Los Gringos").
Em 1962, 1964 e 1965, Jean-Michel Charlier empreende 3 voltas ao mundo, o que não o impede, porém, de criar, em 1963, a famosa série, personificada pelo herói "Tenente Blueberry", com a excelente ilustração do talentoso desenhador Jean Giraud. Com a morte de Charlier, em 1989, coube a Giraud velar pelo destino do herói "Blueberry" e assegurar a continuidade da série, aliás, com excelentes resultados, até ao dias de hoje. Diga-se, a propósito, que, desde 1963 até 2004, foram já publicados 44(!) álbuns desta série, a qual, ao fim de mais de 40 anos, não tem, para já, fim à vista.
Autor superdotado, infatigável e apaixonado por tudo o que fazia, com uma capacidade de trabalho invulgar, que lhe permitia ser extremamente prolífico, Jean-Michel Charlier assinou, aproximadamente, 450 argumentos e diálogos de banda desenhada, para além de ter escrito inúmeras novelas e documentários para rádio e televisão. Os argumentos de Charlier destacam-se e salientam-se pelas suas excitantes, emocionantes e bem documentadas histórias. Na sua escrita sobressai, igualmente, o talento e aptidão para misturar histórias dramáticas com histórias cómicas.
Outra das grandes ambições que Jean-Michel Charlier acalentava era, um dia, vir a trabalhar para a televisão. Este sonho concretiza-se quando é convidado para realizar o documentário "Cavaleiros do Céu", tendo aí a oportunidade de sobrevoar, de helicóptero, o Perú e a Amazónia. Em 1972, Charlier é também convidado, pelo canal 3 da FR3, para realizar, "Os Dossiers Negros", uma grande série de investigações consagradas a personagens ou a acontecimentos sobre os quais pairam grandes enigmas e mistérios, nomeadamente, o caso Stavisky, Al Capone, os assassinatos de Kennedy ou de Martin Luther King, etc. Entre investigações, roteiros/argumentos, filmagens, entrevistas, montagens e comentários, de tudo um pouco fez Charlier, com o seu entusiasmo, energia e talento habituais.
Jean-Michel Charlier trabalhou com os grandes artistas belgas e franceses da banda desenhada do seu tempo. Toda a sua obra e trabalhos ficam a constituir uma referência indiscutível e um marco incontornável da banda desenhada europeia do século XX. Penso que não será demasiado abusivo ou exagerado afirmar que Charlier, juntamente com Greg, são, provavelmente, os mais versáteis, talentosos e prolíficos argumentistas da banda desenhada franco-belga do século XX.
Contribuição de Alexandre Ribeiro